segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

À janela de Saramago

Por trás das janelas acabam as damas de armar os penteados, enormes fábricas de luzimentos e postiços, daqui a pouco vêm pôr-se em exposição à janela, nenhuma vai querer ser a primeira, é certo que imediatamente atrairia os olhares de quem passa ou se mostra na rua, mas esse gosto tão depressa vem, logo é perdido porque, ao abrir-se a janela da casa em frente e nela aparecendo dama que por ser vizinha é rival, desviam-se os olhares de quem me estiver contemplando, ciúme que não suporto, tanto mais que ela é mesquinhamente feia e eu divinamente bela, ela tem a boca grande e a minha é um botão, e antes que ela o diga, digo eu, Vai mote. Para este torneio estão mais bem servidas as que moram nos andares baixos, logo ali se põem os galantes a retorcer o mote nos bestuntos, palpitando a métrica e a rima, mas entretanto, do alto do prédio, outro mote desceu, gritado para bem se ouvir, enquanto o primeiro poeta diz para cima a glosa enfim armada, e os outros, de raiva e despeito, miram frios o concorrente que já recebe as graças da dama, suspeitando de estarem combinados glosa e mote por se haverem, doutras maneiras, combinado ela e ele. Isto se suspeita, isto se cala, porque disto se distribuem igualmente as culpas.

José Saramago, Memorial do Convento. 1982

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