terça-feira, 19 de julho de 2011

Aos meus amigos que tanto sofrem para encolher

Plombières, 20 de Agosto de 1987 
Meu querido Prado
Ainda bem que o seu bilhete, para me livrar da inquietação, me trouxe, ao mesmo tempo a notícia da doença – e da convalescença. Meu amigo! a criatura nunca deve alterar, por modos violentos e bruscos, as proporções que lhe deu o Criador. Quem por motivos fisiológicos, estéticos ou sociais deseje encolher - que o faça por regime discreto, vagaroso, e como que respeitoso do seu próprio ser... Mas saltar para um expresso, correr a uma source (e na Boémia!), para, à força de águas ingurgitadas, se desembaraçar à pressa, em 15 dias, duma numerosa parte da sua substância – é quase um acto contra a Moral. A Natureza, assim violentada, batida por uma vil fonte da Boémia, não perdoa, e sorrateiramente atira logo a facada de vingança, no baço, na garganta ou na virilha. Sempre o precavi contra essa Marienbad ... Antes tivesse V. vindo para Plombières. Estas águas também curam a obesidade: o hotel, com seu regime, convida, força quase à abstinência; a monotonia ambiente seca a fibra; a necessidade de entre montanhas, subir sempre, trepar sempre, desgasta e derreta as banhas mais depressa: - e estou certo que, a esta hora, V. aqui rivalizaria em elegância franzina com o pinheiro das alturas. Eu, por exemplo, verifiquei hoje ter perdido um quilo. Em quê, Santo Deus? Não tenho feito, que eu saiba, dispêndio inútil nenhum da minha substância. Nem arte, nem namoro, nem ambição, nem redemoinho social, nenhuma destas forças absorventes se apossou de mim para me chupar ... e todavia lá vai o meu quilo! Atribuo talvez esta perda ao desespero que me tem dado a banalidade do único livro que tenho lido, por não possuir outro, uma certa Roma e Império dum certo Thomaz. Felizmente para me consolar deste atroz Thomaz, tem estado aqui o Domício. Como veio a Plombières também se plombieriza. Mas esse, não sei como, ganhou um quilo. É decerto o meu. E aqui está a lealdade dum amigo! 
[...]
Carta de Eça de Queirós a Eduardo Prado. Datada de Plombières, 20 de Agosto de 1897. In Beatriz Berrini, Brasil e Portugal: a Geração de 70. Porto, Campo das Letras, 2003. p. 145.

1 comentário:

Isabel X disse...

Que texto mais engraçado!

Para além do tema (actual) e da magistral ironia com que o trata (o assunto presta-se), Eça de Queirós prova bem aqui quanto é exímio na arte de se exprimir em português!

Eu, que gosto muito de apreciar os textos pela forma, admiro a inxcedível capacidade de substantivar os adjectivos que (repare-se) quase não usa. É uma escrita escorreita, limpa, cheia de ritmo: inigualável.
Os escritores assim criam uma nova linguagem que é nada mais nada menos que o próprio estilo da sua escrita.

- Isabel X -