sexta-feira, 10 de junho de 2011

Com Camilo, em Florença (6)

Estava Fernando Gomes em Florença, conforme o seu costume em toda a parte, sequestrado de toda a convivencia, visitando antiguidades, lendo outras, e como que mumificando-se a si proprio entre tantas velharias. Alguem disse a Fernando que o hospedeiro principe de Monfort mostrava aos seus visitadores a espada que Napoleão floreara na batalha de Marengo. Posto que o nosso portuguez presasse muito mais contemplar a lança de Leonidas ou o punhal de Bruto, não quiz perder o lanço de ver o sabre oriental do maior capitão do mundo, depois de Alexandre, e Cesar, dizia elle. O princepe recebeu-o no gabinete, onde estava escrevendo as suas Memorias: mostrou-lhe a espada, facultou-lhe o exame dos tropheus d'armas, recolhidos n'um armario envidraçado; e bem assim dera, congratulando-o pela conquista d'aquella cidade. Fernando, incitado a fallar pelo tom familiar do erudito principe, deu de seu saber muito boa conta sobre pontos de historia antiga, romana e grega, monumentos, batalhas, sciencias, e tudo quanto mereceria ser archivado em volumes grossos de soporiferas academias. O ex-rei de Westphalia deleitou-se em ouvi-lo, não sabendo ainda se era expatriado da Vandêa o cavalheiro que tão correctamente fallava lingua franceza. Fallou de si Fernando em breves termos, dizendo-se portuguez, soldado da liberdade, o infimo dos seus fautores em Portugal. Accrescentou logo que deixara a liberdade do seu paiz, e saíra a procura-la n'outros pontos do mundo, a fim de compara-la com a que deixara na sua terra, rachitica, derrengada e aleijadinha. Gostou o principe da grave sombra com que o douto moço mofava da liberdade dos portuguezes, (gente malquista sempre dos Bonapartes) e prolongou a palestra até horas de jantar. Fernando despediu-se já fatigado da convivencia: o filho do artista dava pouco pela gloria de conversar fito a fito com um ex-monarcha, irmão do heroe de Austerlitz, das Pyramides e de Friedland. Dias decorridos, Fernando foi convidado, em nome do principe de Monfort, a passar a noite no palacio Orlandini. Cogitou o moço no mais urbano modo de esquivar-se ás pesadas honras de tão luzida sociedade. A educação acanhara-o; e os dissabores, suggeridos por causa de seu nascimento, eram-lhe um constante espinho a impellirem-no para longe de ajuntamentos. Assustava-o de mais o receio de encontrar portuguezes nos salões do principe, e ter de responder-lhe ás naturaes perguntas entre conterraneos que se encontram em paiz estrangeiro. Precisamente quereriam saber o seu nome, o nome de seu pae, as suas relações na patria, as mil coisas que se presumem sabidas de homens que viajam e se relacionam com principes. Todos estes barrancos lhe empeciam o caminho do palacio Orlandini, e nenhum expediente lhe suggeriram com que delicadamente recusasse o convite. Sacrificou-se ao dever de quem tinha sido tão affavelmente tratado por personagem assim venerada nos prestigios da magestade, a magestade dos heroismos, mais imponente que a do sceptro hereditario. Antes da sua entrada no palacio, chegara Bartholo de Briteiros com as bellas meninas. Em quanto as duas portuguezas levadas pelas damas se gosavam da frescura da noite nos jardins, que muitas vezes serviam de salões, Jeronymo Bonaparte conversou com Briteiros largamente ácerca do moço portuguez que muito o encantara com a sua vasta erudição, e perguntou ao hospede se conhecia Fernando Gomes. O fidalgo franziu a testa, e disse: —Não sei dizer a vossa alteza quem seja Fernando Gomes. Os Gomes em Portugal não sei quem sejam. Antigamente houveram os de bom toque; mas de D. João I para cá não acho menção d'elles nas chronicas. É appellido obscurecido, ou se perdeu. —Póde ser que o seu patricio achasse o Gomes perdido!...—disse o principe com ar de riso.—O que eu sei é que o portuguez Fernando Gomes sabe muito, e entretem com assumptos, aborrecidos quando a gente os lê nos livros, ou nos monumentos. Gostei muito d'elle, e estimarei que a minha estima agrade ao seu patricio. Pouco depois foi annunciado Fernando Gomes, e logo conduzido á sala em que já estavam as damas da primeira jerarchia toscana; e, entre tantas e tão perigrinas, as nossas angelicaes portuguezas, honrando mais a terra de Camões, que quantos diplomatas nos andam lá por fóra engrandecendo. Bartholo de Briteiros fitou os olhos no portuguez, e lá entre si disse: «Não conheço: isto é homem ordinario.» —Tem aqui um patricio—disse o principe a Fernando.—É emigrado, e pae das duas meninas, que o senhor além vê, que parecem madonas. Ditosas revoluções as que obrigam a sair do seu ninho as formosuras que Deus faz para que todo o mundo as veja! O senhor de Briteiros é um pae ditoso, que se revê nos seus dois cherubins, dignos de Florença mais que de Lisboa. Os modelos que Raphael e Ticiano adivinharam, justo é que vivam em Italia, que é o céo das artes e das maravilhas. Não conhecia o senhor de Briteiros? —Não, senhor—respondeu Fernando. —De onde é o cavalheiro?—perguntou Bartholo. —Sou de Lisboa. —Talvez que, se me disser o nome de seu pae, eu possa conhecer a sua familia. —Vossa excellencia não conhece de certo o nome de meu pae. Sou filho de um homem do povo. —De onde saem os reis do genio—ajuntou Jeronymo Bonaparte. Bartholo fez um gesto insignificativo com a cabeça, e disse, passados minutos: —Veio de Portugal ha muito tempo? —Ha vinte e tres mezes. —Como estão as cousas por lá? Quem governa a canalha? —Governa-se ella, presumo eu—disse Fernando. O principe sorriu e murmurou: —A resposta é um livro completo. A canalha governa-se a si em Portugal... —Em Roma no reinado dos Cezares e no Baixo Imperio, e em toda a parte onde as nacionalidades se dissolvem—accrescentou Fernando. —Diz muito bem!—acudiu Briteiros—Portugal está em dissolução. O senhor é necessariamente realista! —Não, senhor. Fui soldado nas linhas do Porto. Pugnei a favor da liberdade, synonimo de humanidade. Servi-me a mim, servindo as classes abatidas pelo privilegio. Se me enganei, a culpa não foi minha. —Mas enganou-se...—atalhou Bartholo com má cara—A canalha é que reina. —Mas com gravata, luva branca, espada, chapeu de plumas, e arminhos—ajuntou Fernando Gomes. —E isso é bom?—redarguiu o fidalgo. —É bom como lição, como experiencia... —E depois? quando se quizerem emendar, era uma vez Portugal... —Seremos hespanhoes, inglezes, ou turcos, mas com juizo—disse Fernando. —Ahi está o patriotismo dos malhados—exclamou Briteiros. —Basta de politica—interveio o principe de Monfort, a quem destoara a violencia da ultima phrase do ex-ministro da Alçada.


Camilo Castelo Branco, Agulha em Palheiro, 2ª edição, 1865.

2 comentários:

Cláudia S. Tomazi disse...

Honrado seja o gênio de criação do português Camilo Castelo Branco, mas com relação à Obra Agulha em Palheiro, parece que não tem contra-argumento que justifique este repúdio à própria terra, que outrem por argumento arrasta fé aos franceses pela impressão que fica de beijar o chão onde estes pisam, claro que assimilado defeito e por toda ordem não tratar-se a que da humanidade dos conterrâneos, porém a falta de brio para com seus dias de Portugal, é notada fase para pensar-se. E que minha voz, não emudeça a quem de vos o defenda, pois reconhecido como sumidade da destra erudição portuguesa à quem possa confundir tal majestades. Porém, estes traços que perpetua através da obra, são evidências de um autor que buscava o reconhecimento e repudiava-se ao abandono de um engenho que tudo apresenta mas, tudo ausenta, que para a perfeição das perfeições, não lhe bastasse da fonte a propriedade, para saciar a causa. E seria natural que assim o fosse se não necessário ser diferente, pois estas questões por mais miúdas que sejam, possam levantar um pó no asfalto por excelência da obra em questão.

Cláudia disse...

Acrescento a causa em questão, na minha humilde interpretação de Agulha em Palheiro:
“Quais são teus melhores dias Portugal, senão por teus autores”.