quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Memórias: Castelo Branco, 1970/71 (4)

Dos setes meses que permaneci em Castelo Branco, em 1971, poucas lembranças conservo dos seus arredores. Além das idas aos colégios de Proença-a-Nova e Fundão, por altura dos exames, creio que visitei Penha Garcia, Idanha-a-Nova e Monsanto, Almortão, Vila Velha de Ródão e as margens do Ponsul. O facto de não ter carro limitava-me a mobilidade e as frequentes vindas a Lisboa, aos fins de semana, inutilizavam essa oportunidade para reconhecimento turístico do espaço geográfico envolvente.
A visita a Monsanto e Idanha e sobretudo a Penha Garcia foi-me proporcionada pelo prof. Guimarães (não me lembro do nome), um professor de Geografia que acabava de se efectivar em Castelo Branco. Organizava visitas de estudo com os seus alunos e eu inscrevi-me numa. Eram visitas muito bem preparadas, com textos de apoio e orientação no terreno. Impressionou-me a ancestralidade e rudeza das construções e a estratificação geológica muito marcada na paisagem. À ermida da Senhora do Almortão fui também em expedição pedagógica, da responsabilidade do professor de Canto Coral (como então se designava a disciplina de Educação Musical), Carlos Gama. Fomos em dia de ensaio para a romaria (que se realiza duas semanas depois da Páscoa), para ouvirmos os cantares e o toque dos adufes, manejados por mulheres beirãs trigueiras e com os dedos tolhidos por atroses.
O professor Carlos Gama, além de dirigir diversos grupos de canto e música na cidade (o Orfeón de Castelo Branco e a Orquestra Típica Albicastrense), promovia e apreciava o convívio com os colegas do Liceu. Os seus interesse porém não se cingiam à música. Gostava de pescar e era um bom apreciador de gastronomia tradicional. Também apreciava as paisagens surpreendentes da região, nomeadamente as do leito e margens do Rio Ponsul, de facto uma das mais extraordinárias daquele território.
Com o Professor Guimarães eu tivera já uma visita guiada pelo leito do Ponsul junto a Penha Garcia. O Professor Gama levou-me aos sectores localizados junto do ponto de encontro com o Tejo, perto de Vila Velha de Ródão. Nas tardes de Sábado, essas excursões tinham um final feliz gastronómico. Num barracão aquecido por uma lareira, nas traseiras de uma taberna de beira de estrada, o Professor Gama agenciava um jantar que envolvia obrigatoriamente uma sopa de peixe de rio confeccionada na hora e com o peixe pescado entre o momento da nossa chegada e o fim dos aperitivos (queijo, chouriço, pão e vinho) e um coelho à caçadora acompanhado de batata cozida.
Das experiências gastronómicas da época, além dessa sopa de peixe feita com fatias de pão de trigo de véspera, caldo condimentado de cozer os peixes e ovo escalfado, a mais marcante foi a da lampreia. Comi pela primeira vez lampreia na Pensão Império, onde, como já referi, a comida era bem confeccionada. A lampreia era um prato dos meses da Primavera e preparado aos fins de semana. Alguns dos meus colegas desdenhavam a lampreia do Tejo, exaltando a do Minho, mas para mim, que desconhecia por completo a existência daquela prato, declarei-me rendido desde a primeira experiência. A cozinha mais afamada de lampreia na altura situava-se em Vila Velha de Ródão.
A gastronomia do interior beirão colocou-me em presença de alternativas ao peixe de mar. Além dos pequenos peixes de rio, a boga, o achigã, e da lampreia, um peixe entrou também pela primeira vez na minha ementa: o sável.
O sável acompanhava a época da lampreia e surgia na mesa sobretudo na forma de delgadas postas fritas e conservadas em molho de escabeche. Tapear, a meio da tarde, era um dos hábitos albicastrenses. Nos cafés e pensões, serviam-se pratos com queijos e enchidos, lulas fritas e pão. No tempo do sável, este destronava os concorrentes anteriores. A pequena refeição era acompanhada por uma garrafa de vinho. Na época, a relação qualidade-preço pendia a favor do Covilhã 1967 (um vinho da Adega Cooperativa da Covilhã, que, creio, se denomina hoje Piornos).

2 comentários:

Isabel X disse...

... e Castelo Branco também deixou saudades ao João (lhe fez falta), pelo menos de um ponto de vista gastronómico.

Gosto de sável, mas lampreia é mesmo dos pratos de que mais gosto, dos meus preferidos. Penso que esse gosto por lampreia (peixe, não o doce) se acentue, no meu caso, por quase nunca ter oportunidade de a comer.

Com lampreia é assim: ou se adora, ou se detesta. Eu pertenço ao primeiro grupo. Ainda bem! É sempre melhor gostar das coisas que nos podem dar prazer do que o comtrário. Nem que seja pela comida, é sempre preferível nutrir sentimentos benévolos. É mais fácil ser feliz assim!

As coisas que mais intactas guardamos na memória são os cheiros e os sabores. O que conhecemos pelos sentidos!

- Isabel X -

Chantre disse...

Castelo branco, Fundão, Silvares, Barroca do Zêzere, Tortosendo, Três Povos, Caria, Sortelha, aldeias do Sabugal... ou onde melhor se combinam a cordialidade da língua portuguesa sintacticamente correcta expressa em "shibilantje", o aconchego, a boa gastronomia.