terça-feira, 2 de março de 2010

Não está a cousa no levantar, está no cair

Será porventura o estilo que hoje se usa nos púlpitos? Um estilo tão empeçado, um estilo tão dificultoso, um estilo tão afectado, um estilo tão encontrado a toda a arte e a toda a natureza? Boa razão é também esta. O estilo há-de ser muito fácil e muito natural. Por isso Cristo comparou o pregar ao semear. Exiit, qui seminat, seminare. Compara Cristo o pregar ao semear, porque o semear é uma arte que tem mais de natureza que de arte. Nas outras artes tudo é arte: na música tudo se faz por compasso, na arquitectura tudo se faz por regra, na aritmética tudo se faz por conta, na geometria tudo se faz por medida. O semear não é assim. É uma arte sem arte, caia onde cair. Vede como semeava o nosso lavrador do Evangelho. "Caía o trigo nos espinhos e nascia". Aliud cecidit inter spinas, et simul exortae spinae. "Caía o trigo nas pedras e nascia". Aliud cecedit super petram, et natum. "Caía o trigo na terra boa e nascia". Aliud cecidit in terram bonam, et natum. Ia o trigo caindo e nascendo.
Assim há-de ser o pregar. Hão-de cair as cousas e hão-de nascer; tão naturais que vão caindo, tão próprias que venham nascendo. Que diferente é o estilo violento e tirânico que hoje se usa! Vir ver os tristes passos da Escritura, como quem vai ao martírio; uns vêm acarretados, outros vêm arrastados, outros vêm estirados, outros vêm torcidos, outros vêm despedaçados; só atados não vêm. Há tal tirania? então no meio disto, que bem levantado está aquilo! Não está a cousa no levantar, está no caír: Cecedit. Notai uma alegoria própria da nossa língua. O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só de três nasceu; para o sermão vir nascendo, há-de ter três modos de cair: há-de cair com queda, há de cair com cadência, há-de cair com caso. A queda é para as cousas, a cadência para as palavras, o caso para a disposição. A queda é para as cousas, porque hão-de vir bem trazidas e em seu lugar; hão-de ter queda. A cadencia é para as palavras, porque hão-de ser escabrosas nem dissonantes; hão-de ter cadência. O caso é para a disposição, porque há-de ser tão natural e tão desafectada que pareça caso e não estudo: Cecidit, cecidit, cecidit.

Padre António Vieira, Sermão da Sexagésima (1665). In Sermões. Lisboa, Leya, 2008. p. 152-153.

1 comentário:

Xico disse...

E expulsou-os o marquês e o 8 de Outubro de 1910. Tal era o medo que entre eles aparecesse outro Vieira que lhes apontasse os erros e as fraquezas.
Nunca os governos, das direitas ou das esquerdas, gostaram dos que pensam e dos que semeiam.
Obrigado prof João Serra, por ter trazido este texto daquele que considero dos melhores sermões de Vieira.