segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Livre arbítrio

A forma substancial toda, que erecta
é da matéria e é com ela unida,
especial virtude em si colecta
a qual já sem obrar não é sentida,
nem se demonstra mais que por efeito,
como, por verde fronde, em planta a vida.
Assim, lá onde o intelecto é leito
das primeiras notícias, não se sabe,
nem dos primos desejos tal afeito,
que é só em vós, como a abelha se babe
a fazer mel; e em tal primo querer
nem louvor nem censura então lá cabe.
Por este todo o mais vá acolher,
Tem inata virtude que aconselha.
E o limiar do assenso deve ter.
Esse é o princípio lá onde aparelha
razão de merecer em vós, segundo
que amores bons e maus tria e espelha.
E os que discorrem indo ao fundo,
dão conta dessa inata liberdade;
do que moralidade dão ao mundo.
Onde ponhamos a necessidade
vem todo o amor que dentro em vós se acende,
já de retê-lo é em vós a faculdade.


Vasco Graça Moura,
A Divina Comédia de Dante Alighieri. Lisboa, Bertrand, 1997. p. 457.

4 comentários:

Isabel X disse...

Que bela resposta aos anseios que tantos de nós em nós trazemos!
Em Dante está tudo o que é de essencial!
Diz Jorge Luís Borges sobre a Divina Comédia: "Se escolhi a Comédia para esta primeira conferência é porque sou um homem de letras e creio que o ponto auge da literatura e das literaturas é a Comédia. (...) nenhum livro me proporcionou emoções estéticas tão intensas. E eu sou um leitor hedonista, repito-o; procuro emoção nos livros.
A Comédia é um livro que todos devemos ler. Não o fazer é privarmo-nos do melhor dom que a literatura pode dar-nos, é entregarmo-nos a um estranho ascetismo. Porquê negarmo-nos a felicidade de ler a Comédia?"
in Obras Completas, vol. III, pag.224.
Ainda para mais, Vasco Graça Moura é um belíssimo tradutor de Dante. Repare-se na música desta escrita feliz!
- Isabel X -

Anónimo disse...

Liberdade e livre arbítrio...o Purgatório do Homem na vida terrena.
MV

João Ramos Franco disse...

Caro João Serra
O "Livre arbtrio" parece-me ser-nos transmitido na parte do poema que cito:
"E os que discorrem indo ao fundo,
dão conta dessa inata liberdade;
do que moralidade dão ao mundo.
Onde ponhamos a necessidade
vem todo o amor que dentro em vós se acende,
já de retê-lo é em vós a faculdade."
Um abraço
João Ramos Franco

Isabel X disse...

Hesitei em emendar, no meu primeiro comentário, o antepenúltimo verso deste excerto da Divina Comédia, e acabei por não o fazer. Não me pareceu importante na altura e temi que fosse pretensioso da minha parte. Faço-o agora porque, afinal, me parece necessário. Não é "Onde ponhamos a necessidade", mas sim "Onde, ponhamos, de necessidade". Não é bem a mesma coisa, pois não?
- Isabel X -