segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Como colocar um espelho frente à natureza

HAMLET
Dizei a fala, peço-vos, tal como a enunciei, escorreita na língua; porque se a mastigardes como fazem muitos dos vossos actores, mais vale que um arauto me berre os versos. Nem com a mão vos ponde a cortar assim o ar; antes docilmente o fazei; pois na própria torrente, tempestade, e, como direi, moinho dessa vossa paixão, é bom ter e suscitar uma temperança que lhe dê suavidade. Ah, ofende-me cá dentro ouvir o estardalhaço de um fulano de peruca e pó a despedaçar uma paixão, esmifrando-a em verdadeiros farrapos, para ferir os ouvidos da geral, que na sua maior parte só aprecia escarcéu e incompreensíveis pantominas. Por mim mandava açoitar quem exagerasse nesses grotescos de mafoma. Fazem-se mais Herodes que Herodes. Peço-te que evites isso.
1º ACTOR
Posso assegurar vossa senhoria.
HAMLET
Nem demasiado dócil sejais, antes deixai que a própria discrição vos conduza. Ajustai o acto à palavra, e palavra ao acto, com a precaução precisa de não exceder o recato natural. Pois tudo o que é excessivo se afasta da finalidade de representar, cujo intuito foi, e é, de início até hoje, algo como colocar um espelho frente à natureza, mostrando a cara à virtude, a imagem ao que é desprezível, e a forma e impressão que são as suas à época e ar do tempo. Ora isto, em excesso ou a destempo, embora faça rir os inábeis, não deixa de ser deplorado por quem é judicioso, de quem a censura mais deverá pesar-vos do que um teatro cheio de gente. Actores que vi em cena - e ouvi ser elogiados por alguns, e muito - que, sem querer eu blasfemar, não tendo discurso de cristão, nem porte de cristão ou pagão, ou mesmo de homem que fosse, de tal modo se emproavam e gritavam que julguei que um jornaleiro da natureza os houvesse feito, e não muito bem feito, tão abominável era esse seu modo de imitar a humanidade.
1º ACTOR
Espero termos praticamente reformado isso entre nós.
HAMLET
Reformai-o de todo. E que quem faz de bobo não fale mais do que para ele foi escrito; uns há que se põem a rir, para fazer uma mancheia de espectadores estéreis rir-se também, embora haja entretanto um ponto crucial da peça a considerar. É ignóbil isso, e revela ambição altamente lamentável no bobo que o fizer. Ide aprontar-vos.

William Shakespeare, Hamlet, Acto III, Cena II. Lisboa, Edições Cotovia, 2007. p. 86-87.

2 comentários:

Isabel X disse...

Eis outro dos "criadores" da nossa própria humanidade: Shakespeare!
É intolerável, de facto, quando o actor se sobrepõe (quer ser mais?) à palavra que lhe cabe dizer. Nesta época em que domina completamente a imagem sobre a palavra, resta-nos o teatro para a desejável síntese.
Note-se a sabedoria desta frase: "Fazem-se mais de Herodes que Herodes."
E como isto se aplica a tantos dos actores deste palco que é a vida...
Não é verdade? Não é uma ideia (a minha) muito original, mas é verdadeira!
- Isabel X -

João Ramos Franco disse...

..."E que quem faz de bobo não fale mais do que para ele foi escrito;..."
Shakespeare, tambem está certo aqui...
João Ramos Franco