domingo, 24 de maio de 2009

Dentro de caixas de vidro

Agora tinha os pés completamente mortos, os joelhos funcionavam como dobradiças velhas, os rins só actuavam quando lhes apetecia, mas o coração persistia teimosamente em continuar a bater. O passado e o futuro eram a mesma coisa para ele, uma esquecida e outra não recordada; não tinha mais noção da morte do que um gato. Todos os anos, no Confederate Memorial Day, agarravam nele e levavam-no para o Capitol City Museum, onde era mostrado da uma às quatro num quarto bafiento cheio de fotografias velhas, uniformes velhos, artilharias velhas e documentos históricos. Tudo isto estava cuidadosamente guardado dentro de caixas de vidro, para que as crianças não lhes pusessem as mãos em cima. Ele envergava o uniforme de general oferecido na memorável estreia do filme em Atlanta e sentava-se, com um olhar carrancudo completamente fixo, dentro de uma área pequena cercada por cordas. Não havia nada que indicasse que estava vivo a nãos er um movimento ocasional dos olhos cinzentos já enevoados, mas uma vez, quando uma criança mais atrevida lhe tocou na espada, o seu braço saltou para a frente num instante e tirou a mãozinha dali com uma sapatada. Na Primavera, quando as casas antigas abriam para peregrinações, era convidado a vestir o uniforme e a sentar-se nalgum lugar mais conspícuo, para dar atmosfera à cena. Algumas dessas vezes limitava-se a sorrir raivosamente aos visitantes, mas noutras falava do evento e das raparigas bonitas.

Flannery O'Connor, "Um encontro tardio com o inimigo", in Um Bom Homem É Difícil de Encontrar. Lisboa, Cavalo de Ferro, 2006, p. 155-156.

3 comentários:

SucoDaBarbatana disse...

Flannery O'Connor, que descobri tardiamente através duma crónica de Clara F Alves é uma extraordinária escritora norte-americana. Nascida numa família católica ela transmite um retrato desencantado de um sul derrotado, a sua Georgia natal.
A banalização da tragédia e da derrocada das relações familiares e humanas através de uma escrita aparentemente seca e desprendida, tornam-na única. Não sou crítico literário, mas esta mulher merece toda a atenção. Penso que escreveu pouco (em quantidade) e encontrei traduzido em português "O céu é dos violentos", "Sangue Sábio", "Tudo o que sobe deve convergir" e "Um bom homem é difícil de encontrar".
Imperdível.

Anónimo disse...

Lindíssimo.

Obrigado.

Abraço.

Paulo Prudêncio.

Anónimo disse...

Uma viagem ao passado no Memorial Day.
Muito bonito!
MV