quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

A caminho de Peniche (Agosto de 1919)

Continuação da narrativa de viagem a Peniche e Berlengas efectuada por Raúl Brandão, em Agosto de 1919. De Óbidos a Peniche, pela Serra d'El Rei, 3 horas! Peniche "ocupada" pelas fábricas de conservas que ali se instalaram no princípio do século, chegando a atingir as duas dezenas; Peniche desconjuntada por políticas municipais sem gosto nem visão, deixou ao nosso visitante uma impressão de horror contrariada pelo espectáculo do mar em confronto com as fragas.

Peniche é horrível. Por toda a parte por onde têm passado os homens dos municípios - por toda  a parte transformaram as terras cheias de carácter em terras incaracterísticas, com edificações banais, avenidas novas e chalés de zinco nos jardins. Degradaram tudo. Peniche, que foi uma fortificação e um ninho de piratas isolado e feroz, à espreita do naufrágio e da presa, cheira que tomba, e só conserva duas coisas interessantes: o cabo (hão-de deitá-lo abaixo) com a Senhora dos Remédios, e a esplanada, que é um esplêndido cenário para o último acto da Tosca, e um ponto de vista admirável para o sul - grande traço indistinto e roxo, com um ou outro casal, uma ou outra aldeia dispersa e sem nome. Mas Peniche é sobretudo horrível para mim porque é o tipo de pesca industrializada, o barracão, a fábrica de peixe, a caserna da sardinha, onde impera o Fialho do Algarve. Só me ficou uma impressão grata. Perdi-me. Fui por uma rua fora e entrei por acaso num rés-do-chão, escola de rendeiras. Nenhuma teria mais de dez anos. Outras ainda menos. Algumas com dois palmos mal sabiam falar. E todas aquelas mulherzinhas, sentadas no chão e debruçadas sobre os bilros e os piques, levantaram a cabeça e puseram-se a rir para mim... Elas hão-de ser mulheres, eu hei-de ser mais velho do que sou, e não me passa a impressão de ingenuidade e de pureza, dos olhos a sorrir e dos biquitos abertos cor-de-rosa...
Daqui ao cabo é meia légua através de muros, vinhas e casebres. Quero olhar para as Berlengas de mais perto. Desde que as vi fiquei cismático... A Senhora dos Remédios é escavada na rocha subterrânea, junto a fragas enormes que mal se sustentam de pé e que os vagalhões assaltam formidavelmente. Que voz lá no fundo, e que esplendor de luz nesta mole negra e cenográfica que se esboroa na extremidade, tomando o aspecto estranho de torres medievais, com água esverdeada a escavá-las e a roê-las nos antros e cavernas, que ficam a cinquenta metros de profundidade e que repercutem ecos, ameaças, uivos e lamentos de desespero, súplicas dramáticas! É o Castelo do Diabo... E no fundo do horizonte sempre aquelas três nuvens pousadas sobre o mar, chamando por mim. Atraem-me e fascinam-me.

Raul Brandão, Os Pescadores, Lisboa, Estúdios Cor, 1957. p. 122-123.

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