terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Na árvore do Natal (9)

Aos comentadores mais assíduos deste blog, uma lembrança de Natal. Esta é para Maria Manuela Gama Vieira.

Escolhi o tema lunar para evocar a sensibilidade poética de Maria Manuela e pedi a um dos meus escritores predilectos, Jorge Luis Borges (1899-1986), ajuda nesta tarefa. Borges acedeu de imediato, lembrando que em 1925 tinha escrito uma obra intitulada Lua Defronte [da qual faz parte o belíssimo poema "Fervorosa antecipação": Nem a intimidade da tua fronte clara como uma festa,/nem o hábito do teu corpo, ainda de menina e misterioso e tácito,/ nem a sucessão da tua vida assumindo palavras ou silêncios/ serão favor tão misterioso/ como olhar o teu sono envolvido na vigília dos meus braços: Virgem milagrosamente outra vez, pela virtude absolutória do sono,/ serena e resplandecente como a alegria que a memória escolhe,/ dar-me-ás essa margem da tua vida que tu própria não tens./ Entregue à serenidade, divisarei essa praia última do teu ser/ e ver-te-ei acaso pela primeira vez/ como Deus te verá, já dissipada a ficção do Tempo,/ sem o amor, sem mim.]

O lugar da lua na arte poética de Jorge Luis Borges (a lua como espelho) está sintetizado no seguinte poema dedicado à uruguaia María Kodama, sua secretária e companheira desde 1975, e incluido no livro A Moeda de Ferro (1976).

A lua

Há tanta solidão naquele ouro,
A lua destas noites não é igual
À do primeiro Adão. Os longos séculos
Da humana vigília cumularam-na
De antigo pranto. Olha-a. É o teu espelho.

No livro Sete Noites, editado em 1980, JLB publicou um conjunto de conferências proferidas três anos antes em Buenos Aires. Uma delas é dedicada à poesia. Desenvolve aí a tese de Benedetto Croce, comummente esquecida, de que a "se a literatura é expressão, a literatura é feita de palavras e a linguagem é um facto estético", em contraponto à errónea concepção de que "a linguagem corresponde à realidade". Borges exemplificou assim a sua afirmação:

Pensemos numa coisa amarela, resplandecente, cambiante; esta coisa às vezes está no céu e é circular; outras vezes tem a forma de um arco, outras cresce e decresce. Alguém - mas nunca saberemos o nome desse alguém - nosso antepassado, nosso comum antepassado, deu a essa coisa o nome de lua, diferente em diferentes línguas e diversamente feliz. Eu diria que o termo grego selene é demasiado complexo para a lua, que o termo inglês moon tem algo de pausado, algo que obriga a voz à lentidão que convém à lua, que se parece com a lua, porque é quase circular, quase que começa com a mesma letra com que termina. Quanto à palavra luna, essa bonita palavra que herdámos do latim, essa bonita palavra que é comum ao italiano, consta de duas sílabas, de duas peças, o que porventura será demasiado. Temos lua, em português, que parece menos feliz; e lune, em francês, que tem um certo ar misterioso.
Já que estamos a falar em castelhano, escolhemos a palavra luna. Pensemos que alguém, alguma vez, inventou a palavra luna. Sem dúvida, a primeira palavra seria muito diferente. Porque não determo-nos no primeiro homem que disse a palavra luna com este som ou com outro?
Há uma metáfora que tive a ocasião de citar mais de uma vez (perdoem-me a monotonia, mas a minha memória é uma velha memória de setenta e tal anos), aquela metáfora persa que diz que a lua é o espelho do tempo. Na frase "espelho do tempo" está a fragilidade da lua e a eternidade também. Está essa contradição da lua, tão quase translúcida, tão quase nada, mas cuja medida é a eternidade.
Em alemão, a palavra lua é masculina. Assim Nietzsche pôde dizer que a lua é um monge que fita invejosamente a terra, ou um gato, kater, que pisa tapetes de estrelas. Os géneros gramaticais também têm influência na poesia. Dizer "lua" ou dizer "espelho do tempo" são dois factos estéticos, com a diferença de que a segunda é uma obra de segundo grau, porque "espelho do tempo" é composto de duas unidades e "lua" nos dá talvez mais eficazmente a palavra, o conceito de lua. Cada palavra é uma obra poética.

Finalmente, A Cifra, obra editada em 1981, insere "Dezassete Haiku", de que aqui transcrevo os ultimos oito fragmentos:

Esta é a mão
que por vezes tocava
o teu cabelo

Sob o alpendre
o espelho não imita
mais do que a lua

Sob essa lua
a sombra que se alarga
é uma só

É um império
essa luz que se apaga
ou um pirilampo?

A lua nova.
Ela também a vê
da outra porta.

Longe, um trinado.
o rouxinol não sabe
que te consola

A velha mão
insiste em traçar versos
pró esquecimento.

Jorge Luis Borges, Obras Completas, vol. III. Lisboa, Teorema, 1998. p. 141, 265, 351.

4 comentários:

Anónimo disse...

Sem palavras... Que é como quem diz, "no comments"!
- Isabel X -

Anónimo disse...

Chapeau!
MT

Anónimo disse...

De cortar a respiração.

Que combinação...

Abraço.

Paulo Prudêncio.

Anónimo disse...

Mas que bela prenda encontrei na`Árvore de Natal!
Da Lua tenho alguma dificuldade em falar, pelos seus mistérios e segredos, aqueles que, dizem, "ela deposita nos dedos das mulheres".
Só nos de algumas...esse, o mais belo segredo dos segredos!

Feliz Natal e um ano 2009 repleto de Felicidades a quem me pôs esta prenda no sapatinho, e a todos os inspirados comentadores deste blog!