quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Na árvore do Natal (5)

Aos comentadores mais assíduos deste blog, uma lembrança de Natal. Esta é para Isabel Xavier, contrapondo ao seu fascínio pelo mistério poético e pela pintura de histórias o seu (não menor, espero) apreço pelo riso. 
Extracto de um dos mais interessantes depoimentos sobre Rafael Bordalo Pinheiro por quem com ele privou.

Dispunha como ninguém do senso humorístico, e era o primeiro a rir com a própria obra.
Não forçava o assunto. Precisava primeiro encontrar o ser ou o aspecto caricatural. Antes mesmo de o reproduzir, só à ideia do que via ou imaginava, ei-lo a rir, com as suas gargalhadas incessantes.
Ao estrebuchar de um Carnaval, último ano em que a Avenida viu um simulacro de batalha de flores, resolvemos passar juntos as três noites de Entrudo.
E o que mais o divertiu foi ver o Manuel Gustavo a rir. Manuel Gustavo fora educado pelo avô e quando Rafael estava no Rio de Janeiro ficara também em Alcobaça. A educação severa do avô e a admiração de Manuel pelo génio do pai faziam com que não ousasse ostentar a sua graça diante de Bordalo, que tinha muita pena de não gozar o espírito do filho. Tomás Bordalo, irmão de Rafael, pai de Pedro e Dinis Bordalo Pinheiro, foi dar com ele, justamente nessa noite de Carnaval, escondido atrás de uma coluna do hall do Teatro D. Maria.
- Que estás a fazer?
- Estou a ver o Manuel a rir com uns amigos!...
[...]
De vez em quando, ao despedir-se à porta de casa, anunciava-nos:
- Amanhã vou às Caldas.
E desaparecia uns dias.
Por um luminoso dia de Janeiro, arrastou-me com ele às régias termas.
Outra personagem completamente diferente: blusa, com as pontas da lavalière às pintas azuis e brancas por fora da gola e boina - o oleiro.
Percorreu comigo a via sacra das Figuras do Bussaco, inesquecível romagem! Ao passar, levantou os panos que cobriam um busto de mulher admiravelmente bela - era a Visconti, antes de o cancro ter destruido a obra prima da sua beleza. Foi um relâmpago: tornou a velar o busto e foi talvez a única vez em que vi no rosto dele uma velatura de malancolia.
Logo adiante, um motivo de hilariedade esboçado no barro: nem mais nem menos que o Marquês de Franco, a quem Bordalo implacavelmente castigou por certa desatenção. Coisa de nada! Rafael mandara pedir ao Marquês de Franco que lhe cedesse, numa noite célebre, uma das duas cadeiras de S. Carlos. O Marquês respondera que uma era para ele e a outra para o seu sobretudo.
Bordalo caricaturou-o cruelmente! Começou por lhe desenhar a cadeira, guardada a corrente e cadeado; depois, apresentou-o de bouquet em punho ante as bailarinas, e acabou por o ver e mostrar aos raios x. Quando lhe aplicou os raios x às algibeiras da sobrecasaca, não se imagina o que a placa revelou: charutos - uns enormes, para ele, outros mais pequenos, para os amigos - pratos com sardinhas, guardanapos, talheres, ramos de flores, o diabo!
E para cúmulo o pelourinho de barro, que creio não se chegou a acabar. Mas era flagrante, era o Marquês de Franco, a sobrecasaca cintada, levantada pelas proeminências e pelas algibeiras atafulhadas.
E Bordalo ria, porque aquele homem, em quem se pressentia certa amargura, sobretudo depois de ter modelado o busto que ele mal desvelara, só tinha na sua oficina, quer trabalhasse com a pedra litográfica, quer com o barro, um único material: o riso. Quando alguma página apoteótica criava e as personagens eram ídolos do seu coração ou do seu cérebro, Bordalo imolava-se, a ele próprio ou ao gato, para que o público e ele tivessem sempre o seu quinhão de alacridade. Nas suas festas de família, no próprio aniversário, Bordalo punha uma coroa de louros na cabeça e ria da sua figura, ria do absurdo: a glória em Portugal, a sua glória.
[...]
Para nós, Portugueses, foi bom que rimos, pelo menos enquanto ele vivo foi.
[...]
Caminhando século XIX além, topa-se com ervaçal de ridículos; ao exprimirmos alto o nosso juízo, ouve-se um eco - a caricatura de Bordalo; continuando, vai-se dar ao poço motejador que não é senão a gargalhada do artista batendo na rocha da época, e que faz gorgolejar a água negra onde revolteiam tipos e costumes no fundo do poço que ri.

Joaquim Leitão, O Poço que Ri. Rafael Bordalo Pinheiro e o Seu Tempo. Lisboa, 1936. p. 53-62


1 comentário:

Anónimo disse...

Quem me conhece sabe bem que para mim rir é tão natural como respirar! Gosto do riso tanto como da tragédia, como do mistério. E da poesia gosto mais do que de tudo o mais...
Uma vez escrevi um texto intitulado "O Riso e Rafael Bordalo Pinheiro", no qual procurava cruzar as teses de Henri Bergson sobre "O Riso", e o riso que em nós suscita a obra desse grande caricaturista. Confesso que não conhecia este magnífico texto que o João aqui me oferece, o que o torna mais precioso para mim, ao mesmo tempo que denuncia uma lacuna imperdoável para quem já escreveu um texto com o título que referi! O Riso castiga os costumes e é subversivo! É o melhor antídoto da vaidade e é, afinal, a única coisa que nos resta de verdadeiramente válido neste "Vale de Lágrimas"! Só é ridículo quem não consegue rir-se de si mesmo: eis a grande lição de Rafael Bordalo Pinheiro!

Uma vez mais, obrigada João!
Deus lhe pague!
Votos de um Feliz Natal e de um Bom Ano Novo!

- Isabel Xavier -