quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Intolerance (II)

Que me perdoe o João Jales por voltar ao Intolerance, filme a propósito do qual abriu aqui uma polémica. Na Estação do Rossio (não, não estou a puxar pelas coincidências, mau grado o comentário sobre a lentidão dos combóios do Oeste hoje colocado também por JJ) há uma feira do livro (fundos editoriais). Adquiri aí algumas obras editadas pelo extinto Independente. Entre elas, umas Cartas do Brasil Seguidas de Os Verdes Anos da República de 1910, de Chianca de Garcia, cineasta português, realizador, entre outros filmes, de Aldeia da Roupa Branca. Numa crónica intitulada "Cinema", publicada inicialmente na edição de 31 de Maio de 1980 do Diário de Lisboa, Chianca conta os quiproquós que estão na origem da sua carreira no cinema.

Então, uma tarde, ao saír de um cinema onde acabara de ver o filme Intolerância de um americano chamado Griffith, e que o [o autor refere-se a si próprio na terceira pessoa] deixara boquiaberto, ouviu, nas suas costas, alguém que pronunciava em voz alta o seu nome: - Ó Chianca de Garcia, você também gosta de cinema?
Era José Leitão de Barros, espírito inquieto, homem das mais variadas iniciativas, pintor, jornalista, professor, e de quem Lisboa ainda por certo recorda um filme que ele iria dirigir uma década depois, A Severa.
- Você viu a Intolerância e não sente que o teatro, hoje, não passa de arqueologia?
E sorria com um riso quase mordaz: - Abra os olhos. Sonho, quem o tem é o cinema. A arte do nosso tempo, a arte do nosso século...
[...] Durante semanas ao encontrarem-se só falavam de cinema. O autor, por sua vez, e, embora espontaneamente, não saía mais das salas obscuras do cinema. Ainda a preto e branco. Ainda sem som. Mesmo assim, cada vez mais empolgado. Até que um dia disse-lhe Leitão de Barros: - Vou editar um semanário ilustrado a cores. Preciso de gente nova, e com ideias novas. Tenho gostado de ouvir as suas opiniões sobre os filmes que tem visto. Agrada-lhe, por acaso, a ideia de ser o meu crítico cinematográfico?
[...] E quando por fim, vários meses depois, saíu o primeiro número do novo jornal de Leitão de Barros, lá estava o meu artigo, que foi também o último. Isto porque eu, segundo ele, tinha indignado os meios cinematográficos ao afirmar que o cinema, enquanto não tivesse som e o dom da palavra, ainda não seria uma arte. Sim, fui despedido.

Numa entrevista de Manoel Oliveira a João Bénard da Costa (exposição de Serralves aqui referida em Setembro), o cineasta - que começou no mudo - recorda que os cineastas do mudo sublinhavam a expressão artística original do cinema precisamente pela razão inversa de Chianca: o cinema mudo não precisava do som, como o teatro ou a música. Talvez por isso, foram poucos os cineastas do mudo que fizeram carreira no sonoro. Griffith exemplifica-o: pouco trabalhou quando o sonoro se impôs.

3 comentários:

J J disse...

A intolerância está na ordem do dia,é verdade.
Não tinha razão Chianca Garcia (mais uma polémica?) pois o mudo produziria grandes obras-primas do cinema. Mas o lançamento, numa manobra de desespero financeiro, por Jack Warner de "Jazz Singer" em 1927 acabou com o cinema mudo em 3 anos. O que era uma "novidade passageira" impôs-se, acabando também com grandes estrelas que não conseguiram "falar": Lilian Gish, Gloria Swanson,Douglas Fairbanks, Emil Jannings (alemão e com sotaque...), não resistiram ao "sonoro". Curiosamente, preocupados os realizadores com a estranheza do elemento som, não foi uma época de bom cinema.
Sunset Boulevard (1950, Billy Wilder) utilizaria dois dos grandes nomes do mudo, Gloria Swanson e Joseph von Stenbergh, para celebrar essa época como a idade do ouro do Cinema num filme genial.
Espero ter aberto aqui também muitas polémicas, que é uma coisa que eu gosto de fazer.

J J disse...

Penso que o original é brasileiro, mas foi popularizado em Portugal por Corina Freire, uma das mais célebres actrizes e cantoras da revista portuguesa dos anos 20/30. Fala da polémica mudo/sonoro e todos se lembram:

Não há cinema igual ao mudo cá p'ra mim
Pois sendo mudo me diz tudo mesmo assim
P'ra mim o mudo é que há-de ficar de pé
São mais bonitas as fitas sem banzé

O meu sistema com o mudo não se dá
Só o sonoro me diz tudo quanto há
Porque o sonoro além de mais alegre
Tem outro estilo e ouvi-lo só faz bem

Teodoro não vás ao sonoro
Teodoro não sejas ruim
Teodoro repara que eu choro
Se fores ao sonoro não gostas de mim

Teodoro não vás ao sonoro
Teodoro não vás mas eu vou
Porque adoro na vida o sonoro
E há-de ser Teodoro, quem chorar, chorou

Teodoro não vás ao sonoro
Teodoro não vás mas eu vou

O silencioso tem sem par mais distinção
Não se ouve a Greta que a falar lembra um papão
Por isso o mudo é que há-de ficar de pé
Pois sendo mudo diz tudo sem banzé

Podes brincar e blasfemar que ninguém crê
Porque é estupendo ouvir cantar o Chevalier
E o sonoro além de mais moderno
É uma alegria de orgia que faz bem

João B. Serra disse...

Obrigado JJ. Eu calculava que você não perderia uma oportunidade destas para polemizar sobre um tema que obviamente o interessa. Infelizmente, nem o Griffith nem o Chianca estão cá para debater consigo e eu, pobre amante de cinema, não estou em condições, por ignorancia, de o contraditar. Portanto, continuamos esta divisão de trabalho: eu provoco, você polemiza.
Deliciosos versos, Submarino Amarelo.